quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

Ensino artístico especializado e ensino genérico

(texto de Carlos Araújo Alves, publicado hoje no blogue Ideias Soltas)
Apesar do que vem sendo dito e escrito, parece continuar a incorrer-se no mesmo erro que incorreram os autores do “Estudo de Avaliação do Ensino Artístico”: partir do pressuposto de que os objectivos do ensino artístico especializado são os mesmos do ensino genérico. Esta abordagem “transformativa” é errada e distorce, desde logo, as questões devem ser colocadas pelo investigador para a compreensão do que pretende conhecer.Vejamos:- o ensino básico, pelo seu carácter obrigatório, deve promover o acesso, em igualdade, a todas as crianças e adolescentes numa perspectiva de conseguir que todos consigam atingir um patamar de conhecimento que lhes permita, se estudos superiores não prosseguirem, uma competência profissionalizante;- o ensino artístico especializado, está aberto a todos os alunos que nele se queiram inscrever, no regime que os pais escolherem, mas não sendo obrigatório, a sua preocupação deve centrar-se numa exigência de qualidade que a escolaridade obrigatória não permite, pelo facto de não promover (e bem) a inclusão social.No entanto, os níveis de exigência do ensino artístico especializado nunca poderão ser entendidos como elitistas a não ser por pessoas que não consigam compreender que a necessidade de elevados patamares de qualidade e excelência são premissas obrigatórias para formar artistas competentes.
De facto, agora com Bolonha, consegue-se entrar numa universidade e fazer um doutoramento em 7 anos sem nunca ter passado pelo mercado de trabalho, i.e., sem nunca ter praticado o seu mister. Ora, com Bolonha ou sem Bolonha, é muito difícil formar, por exemplo, um músico de qualidade a nível do ensino complementar em 8 anos! Esta característica é que faz com que o ensino artístico neste nível tenha de ser especializado e não genérico. No entanto, a existência de um sistema de ensino artístico especializado de excelência em nada obsta que no currículo do ensino genérico básico possa (e deva) existir uma educação artística adequada a uma escolaridade obrigatória. A confusão entre estas duas diferentes realidades e a necessidade da sua coexistência é que distorce a abordagem e o pensamento. (ler mais no blogue
Ideias Soltas)

terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

Entregue petição "Defesa do Ensino Artístico em Portugal"

Na semana passada, no dia 19, foi entregue a petição pela defesa do ensino artístico em Portugal, criada por Carlos Araújo Alves, que nos enviou a informação abaixo transcrita e em cujo blogue Ideias Soltas se pode encontrar muitos textos que constituem reflexões e uma avaliação lúcida de todo o processo conducente à restruturação do ensino artístico pretendido pelo Ministério da Educação.
Foi ontem entregue a Sua Excelência o Senhor Primeiro-Ministro e Sua Excelência o Senhor Presidente da República a petição "Defesa do Ensino Artístico em Portugal" ( http://www.petitiononline.com/prpm/petition.html ), a quem estava dirigida, que foi elaborada em acto de cidadania por um cidadão não é músico nem professor, mas gestor e investigador em política de gestão cultural, que vem há anos desenvolvendo parte do seu pensamento no blogue Ideias Soltas ( http://ideias-soltas.net ) do qual é autor.Alguns reflexos do acto de entrega da petição nos media:SIC Notícias "Jornal das 2" de 20 de Fevereiro - procurar o sítio e verExpresso de 19 de Fevereiro - http://clix.expresso.pt/gen.pl?p=stories&op=view&fokey=ex.stories/246300 Jornal de Notícias de 20 de Fevereiro - http://jn.sapo.pt/2008/02/20/ultima/abaixoassinado_defesa_ensino_artisti.html Público de 21 de Fevereiro - http://jornal.publico.clix.pt/ , edição impressa pag. 11Jornal de Notícias de 21 de Fevereiro - http://jn.sapo.pt/2008/02/21/nacional/peticao_pede_novo_estudo.html Esta última é a notícia mais fiel, juntamente com a peça da SIC, do que pretendi transmitir, de que existe em Portugal um SISTEMA de Ensino Artístico Especializado com 101 escolas que leccionam música, dança, teatro, artes visuais e audiovisuais, , públicas (apenas 6), particulares e cooperativas, que cobrem Portugal de Norte a Sul, e do litoral ao interior e regiões autónomas, tuteladas e supervisionadas pelo Ministério da Educação e, por consequência, afectadas de igual forma por qualquer alteração que o Ministério da Educação promova nesse sistema.A petição entregue recolheu 4.600 subscritores em 17 dias e baseia-se no facto de denunciar a falta de validade científica do "Estudo de Avaliação do Ensino Artístico" por não ter integrado no grupo de estudo nenhum especialista das áreas de ensino artístico em análise - música, dança, teatro, artes visuais e audiovisuais - e, por outro lado, pelo facto de se ter fundado numa amostra muito reduzida, apenas 6 escolas, as públicas, num universo de 101 tuteladas pelo Ministério da Educação.Neste contexto, os subscritores da petição "Defesa do Ensino Artístico em Portugal" pedem ao Sr, Primeiro-Ministro e ao Sr. Presidente da República que nada seja feito de estruturante no Sistema de Ensino Artístico em Portugal sem antes se apurar, com rigor, através de um estudo a fazer que inclua especialistas do ensino artístico, as boas práticas, o que não está bem, para depois se poder estabelecer uma política que não corra o risco de destruir o Sistema que existe.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

De Valter Lemos a Domingos Fernandes no Público - ler em voz alta, como sugere António Barreto

(enviado por Eurico Carrapatoso, compositor e professor da Escola de Música do Conservatório Nacional)

RETRATO DA SEMANA (Público)

Um naco de prosa
Por António Barreto

PARECE QUE A EDUCAÇÃO está em reforma. Sempre esteve, aliás. Vinte e tal ministros da educação e quase cem secretários de Estado, em pouco mais de trinta anos, estão aí para mostrar o enorme esforço despendido no sector. Uma muito elevada percentagem do produto nacional é entregue ao departamento governamental responsável. Este incansável ministério zela por nós, está atento aos menores sinais de mudança ou de necessidade, corrige infatigavelmente as regras e as normas. Neste 5 de Outubro, dia da República, o Chefe de Estado e o presidente da Câmara de Lisboa não se esqueceram de considerar a educação a mais alta prioridade e a principal causa do nosso atraso. Nesse mesmo dia, mão amiga fez-me chegar o último exemplo do esforço reformador que anima os nossos dirigentes. Com a devida vénia ao signatário, o secretário de Estado Valter Lemos, transcrevo o seu despacho normativo, cuja leitura em voz alta recomendo vivamente:

"O Decreto-Lei n.º 74/2004, de 26 de Março, rectificado pela Declaração de Rectificação n.º 44/2004, de 25 de Maio, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 24/2006, de 6 de Fevereiro, rectificado pela Declaração de Rectificação nº 23/2006, de 7 de Abril, e pelo Decreto-Lei n.º 272/2007, de 26 de Julho, assenta num princípio estruturante que se traduz na flexibilidade de escolha do percurso formativo do aluno e que se consubstancia na possibilidade de organizar de forma diversificada o percurso individual de formação em cada curso e na possibilidade de o aluno reorientar o próprio trajecto formativo entre os diferentes cursos de nível secundário.Assim, o Despacho n.º 14387/2004 (2.ª Série), de 20 de Julho, veio estabelecer um conjunto de orientações sobre o processo de reorientação do percurso escolar do aluno, visando a mudança de curso entre os cursos criados ao abrigo do Decreto-Lei n.º 74/2004, de 26 de Março, mediante recurso ao regime de permeabilidade ou ao regime de equivalência entre as disciplinas que integram os planos de estudos do curso de origem e as do curso de destino, prevendo que a atribuição de equivalências seria, posteriormente, objecto de regulamentação de acordo com tabela a aprovar por despacho ministerial.Neste sentido, o Despacho n.º 22796/2005 (2.ª Série), de 4 de Novembro, veio concretizar a atribuição de equivalências entre disciplinas dos cursos científico-humanísticos, tecnológicos e artísticos especializados no domínio das artes visuais e dos audiovisuais, do ensino secundário em regime diurno, através da tabela constante do anexo a esse diploma, não tendo, no entanto, abrangido os restantes cursos criados ao abrigo do Decreto-Lei n.º 74/2004, de 26 de Março.A existência de constrangimentos na operacionalização do regime de permeabilidade estabelecido pelo Despacho n.º 14387/2004 (2.ª Série), de 20 de Julho, bem como os ajustamentos de natureza curricular efectuados nos cursos científico-humanísticos criados ao abrigo do Decreto-Lei n.º 74/2004, de 26 de Março, implicaram a necessidade de se proceder ao reajuste do processo de reorientação do percurso escolar do aluno no âmbito dos cursos criados ao abrigo do mencionado Decreto-Lei n.º 74/2004, de 26 de Março.Desta forma, o presente diploma regulamenta o processo de reorientação do percurso formativo dos alunos entre os cursos científico-humanísticos, tecnológicos, artísticos especializados no domínio das artes visuais e dos audiovisuais, incluindo os do ensino recorrente, profissionais e ainda os cursos de educação e formação, quer os cursos conferentes de uma certificação de nível secundário de educação quer os que actualmente constituem uma via de acesso aos primeiros, criados ao abrigo do Decreto-Lei n.º 74/2004, de 26 de Março, rectificado pela Declaração de Rectificação n.º 44/2004, de 25 de Maio, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 24/2006, de 6 de Fevereiro, rectificado pela Declaração de Rectificação n.º 23/2006, de 7 de Abril, e pelo Decreto-Lei n.º 272/2007, de 26 de Julho, e regulamentados, respectivamente, pelas Portarias n.º 550-D/2004, de 22 de Maio, alterada pela Portaria n.º 259/2006, de 14 de Março, n.º 550-A/2004, de 21 de Maio, com as alterações introduzidas pela Portaria n.º 260/2006, de 14 de Março, n.º 550-B/2004, de 21 de Maio, com as alterações introduzidas pela Portaria n.º 780/2006, de 9 de Agosto, n.º 550-E/2004, de 21 de Maio, com as alterações introduzidas pela Portaria n.º 781/2006, de 9 de Agosto, n.º 550-C/2004, de 21 de Maio, com as alterações introduzidas pela Portaria n.º 797/2006, de 10 de Agosto, e pelo Despacho Conjunto n.º 453/2004, de 27 de Julho, rectificado pela Rectificação n.º 1673/2004, de 7 de Setembro.Assim, nos termos da alínea c) do artigo 4.º e do artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 74/2004, de 26 de Março, rectificado pela Declaração de Rectificação n.º 44/2004, de 25 de Maio, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 24/2006, de 6 de Fevereiro, rectificado pela Declaração de Rectificação nº 23/2006, de 7 de Abril, e pelo Decreto-Lei n.º 272/2007, de 26 de Julho, determino:

O que se segue é indiferente. São onze páginas do mesmo teor. Uma linguagem obscura e burocrática, ao serviço da megalomania centralizadora. Uma obsessão normativa e regulamentadora, na origem de um afã legislativo doentio. Notem-se as correcções, alterações e rectificações sucessivas. Medite-se na forma mental, na ideologia e no pensamento que inspiram este despacho. Será fácil compreender as razões pelas quais chegámos onde chegámos. E também por que, assim, nunca sairemos de onde estamos.

António Barreto (in Público)
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De Domingos Fernandes basta esta citação, pois, como diria Shakespiere: Say no more!
"Os conservatórios são escolas secundárias, não podem dar umas aulas avulsas, têm de ter turmas, não podem ser centros de explicações. Não vejo por que é que os meus impostos têm de financiar o ensino supletivo a adultos que já tocam e vão ao conservatório aperfeiçoar-se."

(in Público, 12.Fev.2008)

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É caso para citar Bocage:

No Público um Domingos se apresenta;
Prega nas grades espantoso murro;
E acalmado do povo o grã sussurro
O dique das asneiras arrebenta.

Isto seria extremamente cómico, não fosse trágico.
A Educação portuguesa está nas mãos desta corja.
Estes doutores deviam lavar a boca antes de falar de música e dos conservatórios.

Acordai!

Eurico Carrapatoso

Comentários a propósito do debate sobre o ensino especializado da música SIC Notícias 16/2

(Carta de Helena Lima, professora da Escola de Música do Conservatório Nacional, à redacção da Sic Notícias)
Caros senhores,
Na qualidade de co-responsável pela coordenação pedagógica dos pólos do Conservatório Nacional em Loures e na Amadora, tenho a fazer o seguinte comentário às declarações realizadas pelo Dr. Paulo Feliciano na SIC Notícias (23h):

Desde 2004 que, com o intuito de alargar o acesso ao ensino especializado da música a mais crianças que residem nas áreas metropolitanas de Lisboa, com autorização do Ministério da Educação, foram criados pela Escola de Música do Conservatório Nacional (EMCN) e em colaboração com as câmaras de Loures e da Amadora, pólos pedagógicos para a leccionação da iniciação musical em instrumentos de corda friccionada, tendo-se posteriormente alargado também à iniciação em piano. As aulas, cujo curriculo é absolutamente idêntico ao do realizado na sede da EMCN (rua dos Caetanos) contempla aula individual de instrumento, aula de Formação Musical e aula de Casse de Conjunto (expressão dramática, coro e naipe/orquestra), num total de seis horas semanais. Com a impossibilidade de os Conservatórios continuarem a ministrar as iniciações musicais, estes pólos serão extintos. O que os substituirá? É absolutamente imprescindível que o Ministério da Educação clarifique, e rapidamente, qual o modelo que está a propôr para as iniciações musicais, como e onde vão funcionar. De referir que o pedido de funcionamento dos pólos, integrados numa política de escola de alargamento do acesso ao ensino especializado da música, remonta a 2001. Em Abril de 2007, a EMCN requereu a abertura de duas turmas de ensino integrado - uma para o 1ºgrau da iniciação musical (1º ano do 1º ciclo), relativamente à qual não se obteve qualquer resposta, e uma para o 1º grau do curso básico de Música (5º ano de escolaridade), que obteve autorização e está a funcionar desde o início do ano lectivo (desde 2001 que a escola ministra igualmente, para além do regime supletivo, ensino integrado ao nível do secundário - 10º, 11º e 12º ano).

Sobre a questão do ensino supletivo - a EMCN não contexta a realização de ensino integrado, como o prova o último período do parágrafo anterior. Mas reprova em absoluto a extinção do regime supletivo que permite a frequência em paralelo de duas escolas, uma em que o aluno frequenta o curso de música (as escolas de música) e outra em que frequenta o ensino regular. Este sistema permite, a alunos que moram longe do conservatório, deslocar-se duas vezes por semana para ter as suas aulas de música e continuar a frequentar o curriculo do ensino regular numa escola da sua área de residência, com todas as vantagens que isso implica; permite que a opção de frequência da escola do ensino regular não fique condicionada à escola do ensino da música; permite que alunos iniciem o estudo de determinados instrumentos sem a obrigatoriedade de conjugação com o ano da escolaridade regular (particularmente alguns instrumentos de sopro e de canto que se iniciam em idades mais avançadas por razões anátomo-fisiológicas); permite igualmente responder ao despertar de vocações musicais mais tardias.

Grata pela atenção

Helena Lima (professora da EMCN)

PS: Anexo ainda dois endereços que documentam e ilustram a contestação desenvolvida pelas escolas de música (´conservatórios de Lisboa, Aveiro e Coimbra e Instituto Gregoriano de Lisboa):
http://www.youtube.com/watch?v=Mwv9spyOKOs
http://www.youtube.com/watch?v=lmil333Ardo

Conservatório: sucesso ou insucesso, eis a questão!

(texto de Domingos Peixoto, organista, professor da Universidade de Aveiro)
A reforma do ensino artístico vem agitando as primeiras páginas da imprensa oral e escrita, como poucas vezes tem acontecido; nem mesmo por ocasião do famoso Decreto-Lei 310/83, que retirou dos Conservatórios o ensino superior, já lá vão 25 anos. Este diploma clarificou os regimes de escolaridade no Ensino Vocacional da Música. Em primeiro lugar, o regime integrado, em que o aluno frequenta, no Conservatório, tanto as disciplinas musicais, como as do ensino obrigatório. Em segundo lugar, o regime articulado, em que o aluno também tem um plano de estudos integrado, mas em duas escolas diferentes: uma, do Ensino Básico e Secundário, para as disciplinas do ensino obrigatório e, o Conservatório, para as disciplinas musicais. Em terceiro lugar, o regime supletivo, em que o aluno frequenta o Conservatório, separadamente da frequência de outra escola ou, até do exercício de uma actividade profissional. Os três regimes têm coexistido nos conservatórios de Porto, Aveiro Coimbra e Lisboa e no Instituto Gregoriano, embora com uma esmagadora maioria de alunos no regime supletivo. O Conservatório de Braga foi estruturado para o ensino integrado por ocasião da inauguração do actual edifício (1971) e assim continuou a funcionar após a oficialização. No entanto, a escola mantém uma percentagem de cerca de 20% dos alunos em regime supletivo.
O Governo encomendou a avaliação do ensino artístico a uma comissão que, por sinal, não integrou nenhum músico. Este ponto de partida nunca poderia ter dado bons resultados. Que dizer, já agora, sobre a encomenda da reforma do sistema jurídico a engenheiros agrónomos, por exemplo? Numa reunião da Sr.ª Ministra da Educação com as direcções dos Conservatórios, um dos elementos da referida comissão afirmou, com ar quase escandalizado, que até nem percebia o porquê das aulas individuais nestas escolas!... Convenhamos que o facto de se tratar de um ensino muito específico não é nenhum privilégio – como muitas vezes se tem insinuado – mas, simplesmente, uma realidade incontornável, que passa ao lado de quem não faz da música a sua profissão. Apetece citar uma frase de Gustav Mahler (um cós compositores preferidos da Sr.ª Ministra da Educação): "Tudo está escrito na partitura, excepto o essencial". De facto, também para os especialistas das Ciências da Educação que se debruçaram sobre as questões da prática e do ensino da Música, tudo estava na partitura: parâmetros de organização, avaliação, certificação, estatística de abandono escolar, enquadramento na rede (que, neste caso, até nem existe!), custos do ensino, etc. Só faltava uma coisa: a própria realidade da actividade musical desenvolvida pelo Conservatório, como uma poderosíssima máquina que move a cultura e a economia. Sim!... A economia. Nenhum cidadão honesto pode fechar os olhos à extraordinária expansão do mercado e do consumo musical nos últimos anos: produção de concertos e espectáculos musicais, mercado discográfico, edição de partituras, etc.
Passar, propositadamente, ao lado desta "produção musical" devida, em grande parte, ao regime supletivo dos Conservatórios, é grave e ofensivo. Mas a comissão observou que a grande maioria dos alunos não completa o curso (8.º grau); eles são, por consequência, alunos "sem sucesso", que "abandonam" o ensino. Enfim … uns fracassados!... Comunicados os resultados ao Ministério da Educação, a sua titular depressa tratou de pôr cobro a esta "desgraça"! E, olhando para o Conservatório de Braga (onde os alunos, por se tratar de ensino integrado, têm sempre o sucesso garantido), não hesitou em impor este regime como modelo único de sucesso para todos os outros.
Os músicos, habituados a ler partituras onde "está tudo escrito, menos o essencial", são conscientes de que esta medida seria desastrosa para a Música em Portugal, precisamente porque, nesta matéria, basear uma reforma no "sucesso" estatístico de diplomas é, simplesmente, partir de um falso suposto. O ensino do Conservatório (maioritariamente em regime supletivo) é um degrau essencial na formação dos futuros profissionais da Música. Mas, ignorar os frutos deste regime e centrar-se apenas na certificação, é uma desvirtuação que, levada a sério, nos faria perguntar para que serve, hoje em dia, o diploma do 8.º grau. Para o ingresso no Ensino Superior? Não. O acesso a todos os cursos superiores de Música é feito mediante provas específicas (pré-requisitos); é exigido um diploma do 12.º ano, mas não o 8.º grau do Conservatório. Para o ingresso numa orquestra profissional? Também não. A admissão é feita mediante provas práticas, independente do candidato ter ou não ter um diploma do Conservatório. Para o ingresso em actividades profissionais diversas – produção musical, técnicas de gravação, etc.? Claro que não. Então, para que serve o diploma do Conservatório? Só mesmo para a estatística!... Ora, foi apenas na escassez de diplomas passados aos alunos do supletivo que foi ditada a sentença da sua asfixia.
No passado dia 15, no final de uma reportagem da manifestação dos músicos em Lisboa, ouvimos a Sr.ª Ministra da Educação afirmar que o regime supletivo "é fonte de insucesso; tem que ser apenas residual". Curiosamente, o que a Sr.ª Ministra avalia, secamente, como "insucesso", é o maior sucesso do regime supletivo! Na verdade, um elevado número dos tais alunos, que "abandonaram" o Conservatório sem sucesso, entraram no ensino superior ou no mercado de trabalho, na máquina económica propulsionada por estas mesmas escolas de Música. Ou seja, o Conservatório deu a muitos destes alunos uma qualificação musical que lhes permitiu entrar no ensino superior ou no exercício de uma actividade musical, mesmo antes de terminarem o curso. Se isto não é sucesso (sobretudo num momento em que o desemprego está em níveis preocupantes) então o que é? Pretenderá o Ministério da Educação insinuar que se deve apenas ao regime integrado a necessidade, verificada nos últimos anos, do progressivo alargamento de cursos superiores de Música nas Universidades e Institutos Politécnicos? Está por fazer a verdadeira avaliação – a única que interessa à Música em Portugal: averiguar, não os desvalorizados diplomas, mas os dados relativos à efectiva dinamização da cultura e da economia musical nos últimos anos, feita através do regime supletivo, e compará-los com idênticos factores do regime integrado. Só assim podemos ter uma base séria e credível para fundamentar uma reforma, seja ela qual for.
Fala-se de alargamento do acesso ao ensino da Música. Mas, a imposição do regime integrado, como modelo único, vai precisamente em sentido oposto! Sirvam de exemplo os dois conservatórios Gulbenkian – os de Braga e de Aveiro. Enquanto o primeiro (regime integrado) tem cerca de 350 alunos, o segundo (maioritariamente em regime supletivo e com um edifício muito mais pequeno) tem cerca de 550. É isto o alargamento do acesso ao ensino da Música? Se uma parte substancial do edifício tem que ser ocupada pela leccionação das disciplinas do ensino obrigatório, o número de alunos tem que ser drasticamente reduzido, pondo em causa as numerosas orquestras, bandas sinfónicas, grupos de música de câmara e coros, que representam o principal elo de ligação entre a escola e a comunidade.
No Ensino Vocacional da Música não podemos falar propriamente de uma rede escolar. Trata-se apenas de 6 escolas públicas que são, para todos os efeitos, verdadeiros "Conservatórios de Região". Se lhes impomos o regime integrado, estamos a desvirtuar o seu papel de serviço a uma comunidade mais vasta e a vedar o acesso a alunos geograficamente mais distantes. Além disso, o acesso será, prioritariamente, para alunos do 5.º ano de escolaridade, deixando "em lista de espera" (ou, para a percentagem "residual", na expressão da Sr.ª Ministra) todos os restantes candidatos. Atenção, que não estamos a falar de alunos de 20 ou 25 anos, mas de alunos em idade escolar, incluindo o 1.º ciclo. Assim, no acesso ao Ensino Vocacional não terão prioridade os alunos mais dotados para a Música, mas aqueles cujas idades melhor se enquadram no sistema. Isto tem uma consequência mais grave: vão ficar de fora potenciais alunos de excelência, pelo facto de terem optado por uma profissão musical numa idade que se não ajusta ao regime integrado, ou porque, geograficamente, ele é impossível. Se quiserem concretizar a sua escolha, terão que o fazer em escolas privadas, pagando, claro! Não esqueçamos que, no ensino obrigatório, a escolha da via profissional é apenas no 10.º ano.
Esta chamada de atenção não me impede de afirmar a necessidade urgente de corrigir alguns desvios no regime supletivo, nomeadamente no que diz respeito à idade de admissão e ao comprometimento dos alunos com o Conservatório. Mas uma coisa é a necessidade de melhoraria da qualidade e da eficácia, num razoável equilíbrio da coexistência com o regime de plano de estudos integrado; outra coisa é a sentença de asfixia, cujas consequências os responsáveis do Ministério da Educação não estão preocupados em avaliar.
Na entrevista desta manhã na Antena2, a S.ª Ministra procurou apaziguar a opinião pública, avançando com a celebração de contratos de autonomia com cada um dos Conservatórios, de modo a flexibilizar a aplicação das linhas gerais da reforma, no que diz respeito à admissão de alunos, tanto no 1.º ciclo, como em regime supletivo. Mas não abdicou do termo "residual" para o regime que formou a esmagadora maioria dos músicos profissionais portugueses! Será que este termo horrível vai ficar consignado na Lei? Só me faltava, ao fim de 35 anos de actividade profissional, ser considerado fruto de "resíduos" de ensino!.... Resta-me a consolação de ter no mesmo barco mais uns largos milhares de colegas com o mesmo rótulo!... A inexistência de conservatórios ao nível do ensino secundário em alguns países europeus é compreensível para os músicos, mas enganador para os técnicos das reformas. É que, nesses países, o ensino da Música é uma realidade levada a sério em todas as escolas do ensino obrigatório. Supor uma situação idêntica no nosso país é uma miragem, dolorosamente utópica. Por isso, não se misturem os alhos com os bugalhos: uma coisa é a Música no ensino obrigatório, a que todo o cidadão português tem direito, mas que o Estado lhe recusa; outra coisa é o ensino vocacional, especializado e profissionalizante. Quando em Portugal todas as escolas do ensino regular tiverem um nível de ensino musical equivalente ao dos países que podem prescindir dos conservatórios, então os músicos deixarão de ter motivos para se manifestarem contra esta reforma anunciada.