(texto de Domingos Peixoto, organista, professor da Universidade de Aveiro)
A reforma do ensino artístico vem agitando as primeiras páginas da imprensa oral e escrita, como poucas vezes tem acontecido; nem mesmo por ocasião do famoso Decreto-Lei 310/83, que retirou dos Conservatórios o ensino superior, já lá vão 25 anos. Este diploma clarificou os regimes de escolaridade no Ensino Vocacional da Música. Em primeiro lugar, o regime integrado, em que o aluno frequenta, no Conservatório, tanto as disciplinas musicais, como as do ensino obrigatório. Em segundo lugar, o regime articulado, em que o aluno também tem um plano de estudos integrado, mas em duas escolas diferentes: uma, do Ensino Básico e Secundário, para as disciplinas do ensino obrigatório e, o Conservatório, para as disciplinas musicais. Em terceiro lugar, o regime supletivo, em que o aluno frequenta o Conservatório, separadamente da frequência de outra escola ou, até do exercício de uma actividade profissional. Os três regimes têm coexistido nos conservatórios de Porto, Aveiro Coimbra e Lisboa e no Instituto Gregoriano, embora com uma esmagadora maioria de alunos no regime supletivo. O Conservatório de Braga foi estruturado para o ensino integrado por ocasião da inauguração do actual edifício (1971) e assim continuou a funcionar após a oficialização. No entanto, a escola mantém uma percentagem de cerca de 20% dos alunos em regime supletivo.
O Governo encomendou a avaliação do ensino artístico a uma comissão que, por sinal, não integrou nenhum músico. Este ponto de partida nunca poderia ter dado bons resultados. Que dizer, já agora, sobre a encomenda da reforma do sistema jurídico a engenheiros agrónomos, por exemplo? Numa reunião da Sr.ª Ministra da Educação com as direcções dos Conservatórios, um dos elementos da referida comissão afirmou, com ar quase escandalizado, que até nem percebia o porquê das aulas individuais nestas escolas!... Convenhamos que o facto de se tratar de um ensino muito específico não é nenhum privilégio – como muitas vezes se tem insinuado – mas, simplesmente, uma realidade incontornável, que passa ao lado de quem não faz da música a sua profissão. Apetece citar uma frase de Gustav Mahler (um cós compositores preferidos da Sr.ª Ministra da Educação): "Tudo está escrito na partitura, excepto o essencial". De facto, também para os especialistas das Ciências da Educação que se debruçaram sobre as questões da prática e do ensino da Música, tudo estava na partitura: parâmetros de organização, avaliação, certificação, estatística de abandono escolar, enquadramento na rede (que, neste caso, até nem existe!), custos do ensino, etc. Só faltava uma coisa: a própria realidade da actividade musical desenvolvida pelo Conservatório, como uma poderosíssima máquina que move a cultura e a economia. Sim!... A economia. Nenhum cidadão honesto pode fechar os olhos à extraordinária expansão do mercado e do consumo musical nos últimos anos: produção de concertos e espectáculos musicais, mercado discográfico, edição de partituras, etc.
Passar, propositadamente, ao lado desta "produção musical" devida, em grande parte, ao regime supletivo dos Conservatórios, é grave e ofensivo. Mas a comissão observou que a grande maioria dos alunos não completa o curso (8.º grau); eles são, por consequência, alunos "sem sucesso", que "abandonam" o ensino. Enfim … uns fracassados!... Comunicados os resultados ao Ministério da Educação, a sua titular depressa tratou de pôr cobro a esta "desgraça"! E, olhando para o Conservatório de Braga (onde os alunos, por se tratar de ensino integrado, têm sempre o sucesso garantido), não hesitou em impor este regime como modelo único de sucesso para todos os outros.
Os músicos, habituados a ler partituras onde "está tudo escrito, menos o essencial", são conscientes de que esta medida seria desastrosa para a Música em Portugal, precisamente porque, nesta matéria, basear uma reforma no "sucesso" estatístico de diplomas é, simplesmente, partir de um falso suposto. O ensino do Conservatório (maioritariamente em regime supletivo) é um degrau essencial na formação dos futuros profissionais da Música. Mas, ignorar os frutos deste regime e centrar-se apenas na certificação, é uma desvirtuação que, levada a sério, nos faria perguntar para que serve, hoje em dia, o diploma do 8.º grau. Para o ingresso no Ensino Superior? Não. O acesso a todos os cursos superiores de Música é feito mediante provas específicas (pré-requisitos); é exigido um diploma do 12.º ano, mas não o 8.º grau do Conservatório. Para o ingresso numa orquestra profissional? Também não. A admissão é feita mediante provas práticas, independente do candidato ter ou não ter um diploma do Conservatório. Para o ingresso em actividades profissionais diversas – produção musical, técnicas de gravação, etc.? Claro que não. Então, para que serve o diploma do Conservatório? Só mesmo para a estatística!... Ora, foi apenas na escassez de diplomas passados aos alunos do supletivo que foi ditada a sentença da sua asfixia.
No passado dia 15, no final de uma reportagem da manifestação dos músicos em Lisboa, ouvimos a Sr.ª Ministra da Educação afirmar que o regime supletivo "é fonte de insucesso; tem que ser apenas residual". Curiosamente, o que a Sr.ª Ministra avalia, secamente, como "insucesso", é o maior sucesso do regime supletivo! Na verdade, um elevado número dos tais alunos, que "abandonaram" o Conservatório sem sucesso, entraram no ensino superior ou no mercado de trabalho, na máquina económica propulsionada por estas mesmas escolas de Música. Ou seja, o Conservatório deu a muitos destes alunos uma qualificação musical que lhes permitiu entrar no ensino superior ou no exercício de uma actividade musical, mesmo antes de terminarem o curso. Se isto não é sucesso (sobretudo num momento em que o desemprego está em níveis preocupantes) então o que é? Pretenderá o Ministério da Educação insinuar que se deve apenas ao regime integrado a necessidade, verificada nos últimos anos, do progressivo alargamento de cursos superiores de Música nas Universidades e Institutos Politécnicos? Está por fazer a verdadeira avaliação – a única que interessa à Música em Portugal: averiguar, não os desvalorizados diplomas, mas os dados relativos à efectiva dinamização da cultura e da economia musical nos últimos anos, feita através do regime supletivo, e compará-los com idênticos factores do regime integrado. Só assim podemos ter uma base séria e credível para fundamentar uma reforma, seja ela qual for.
Fala-se de alargamento do acesso ao ensino da Música. Mas, a imposição do regime integrado, como modelo único, vai precisamente em sentido oposto! Sirvam de exemplo os dois conservatórios Gulbenkian – os de Braga e de Aveiro. Enquanto o primeiro (regime integrado) tem cerca de 350 alunos, o segundo (maioritariamente em regime supletivo e com um edifício muito mais pequeno) tem cerca de 550. É isto o alargamento do acesso ao ensino da Música? Se uma parte substancial do edifício tem que ser ocupada pela leccionação das disciplinas do ensino obrigatório, o número de alunos tem que ser drasticamente reduzido, pondo em causa as numerosas orquestras, bandas sinfónicas, grupos de música de câmara e coros, que representam o principal elo de ligação entre a escola e a comunidade.
No Ensino Vocacional da Música não podemos falar propriamente de uma rede escolar. Trata-se apenas de 6 escolas públicas que são, para todos os efeitos, verdadeiros "Conservatórios de Região". Se lhes impomos o regime integrado, estamos a desvirtuar o seu papel de serviço a uma comunidade mais vasta e a vedar o acesso a alunos geograficamente mais distantes. Além disso, o acesso será, prioritariamente, para alunos do 5.º ano de escolaridade, deixando "em lista de espera" (ou, para a percentagem "residual", na expressão da Sr.ª Ministra) todos os restantes candidatos. Atenção, que não estamos a falar de alunos de 20 ou 25 anos, mas de alunos em idade escolar, incluindo o 1.º ciclo. Assim, no acesso ao Ensino Vocacional não terão prioridade os alunos mais dotados para a Música, mas aqueles cujas idades melhor se enquadram no sistema. Isto tem uma consequência mais grave: vão ficar de fora potenciais alunos de excelência, pelo facto de terem optado por uma profissão musical numa idade que se não ajusta ao regime integrado, ou porque, geograficamente, ele é impossível. Se quiserem concretizar a sua escolha, terão que o fazer em escolas privadas, pagando, claro! Não esqueçamos que, no ensino obrigatório, a escolha da via profissional é apenas no 10.º ano.
Esta chamada de atenção não me impede de afirmar a necessidade urgente de corrigir alguns desvios no regime supletivo, nomeadamente no que diz respeito à idade de admissão e ao comprometimento dos alunos com o Conservatório. Mas uma coisa é a necessidade de melhoraria da qualidade e da eficácia, num razoável equilíbrio da coexistência com o regime de plano de estudos integrado; outra coisa é a sentença de asfixia, cujas consequências os responsáveis do Ministério da Educação não estão preocupados em avaliar.
Na entrevista desta manhã na Antena2, a S.ª Ministra procurou apaziguar a opinião pública, avançando com a celebração de contratos de autonomia com cada um dos Conservatórios, de modo a flexibilizar a aplicação das linhas gerais da reforma, no que diz respeito à admissão de alunos, tanto no 1.º ciclo, como em regime supletivo. Mas não abdicou do termo "residual" para o regime que formou a esmagadora maioria dos músicos profissionais portugueses! Será que este termo horrível vai ficar consignado na Lei? Só me faltava, ao fim de 35 anos de actividade profissional, ser considerado fruto de "resíduos" de ensino!.... Resta-me a consolação de ter no mesmo barco mais uns largos milhares de colegas com o mesmo rótulo!... A inexistência de conservatórios ao nível do ensino secundário em alguns países europeus é compreensível para os músicos, mas enganador para os técnicos das reformas. É que, nesses países, o ensino da Música é uma realidade levada a sério em todas as escolas do ensino obrigatório. Supor uma situação idêntica no nosso país é uma miragem, dolorosamente utópica. Por isso, não se misturem os alhos com os bugalhos: uma coisa é a Música no ensino obrigatório, a que todo o cidadão português tem direito, mas que o Estado lhe recusa; outra coisa é o ensino vocacional, especializado e profissionalizante. Quando em Portugal todas as escolas do ensino regular tiverem um nível de ensino musical equivalente ao dos países que podem prescindir dos conservatórios, então os músicos deixarão de ter motivos para se manifestarem contra esta reforma anunciada.
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